Fonte: https://heviof.jusbrasil.com.br/artigos/425861575/superlotacao-carceraria-no-brasil
“(…) No dia 12 de janeiro de 2016, por volta das 09 horas, na Rua 29, em localidade conhecida como “sem terra”, situado no interior da comunidade Vila Cruzeiro, no Complexo de Favelas do Alemão, bairro da Penha, nesta cidade, o denunciado, com consciência e vontade, trazia consigo, com finalidade de tráfico, 0,6g (seis decigramas) da substância entorpecente Cannabis Sativa L., acondicionados em uma embalagem plástica fechada por nó, bem como 9,3g (nove gramas e três decigramas) de Cocaína (pó), distribuídos em 06 cápsulas plásticas incolores e 02 embalagens plásticas fechadas por grampo, contendo a inscrição “CV-RL/PÓ 3/COMPLEXO DA PENHA”, tudo sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar. “. Esse trecho faz parte da sentença expedida pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e poderia ser a sentença não de qualquer um, mas de qualquer negro, pobre, periférico. E é.
Rafael Braga Vieira, 25 anos, catador de materiais recicláveis, foi condenado a 5 anos de prisão por portar uma garrafa de Pinho Sol e uma garrafa de água sanitária durante as manifestações de 2013, sob a alegação de que ele as usaria com a finalidade de produzir coquetel molotov, uma arma incendiária geralmente usada durante manifestações políticas, mesmo que os produtos encontrados com o réu não possuíssem caráter incendiário e ele não tivesse nenhuma ligação com as manifestações que aconteciam naquele ano. Por conta disso, Rafael Braga, já em regime aberto e trabalhando como auxiliar de serviços gerais em um escritório de advocacia, utilizava tornozeleira eletrônica quando foi preso no dia 12 de janeiro de 2016 e condenado a 11 anos e 3 meses de prisão e ao pagamento de R$ 1.687 após ser pego pela Polícia Militar com, supostamente, 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um rojão em uma abordagem, porém, foi julgado levando em consideração apenas o depoimento dos policiais que o abordaram, mesmo que entrassem em contradição, descartando completamente o depoimento de Evelyn Barbara, vizinha de Rafael, que alegou ter visto a abordagem e que o réu não possuía nada em suas mãos. Além disso, Evelyn também contou que viu Rafael sofrendo agressões físicas por parte de PM. Rafael, por sua vez, negou todas as acusações e contou ter sido vítima de violência policial e ameaçado caso não entregasse traficantes da região, e ainda que os policiais tentaram o forçar a cheirar cocaína dentro da viatura.
Leandro de Souza Santos, 18 anos, usuário de drogas, catador de material reciclável e servente de pedreiro, foi morto por policiais da ROTA no dia 27 de junho de 2017, quando os PM’s entraram na Favela do Moinho, em São Paulo, em busca de um laboratório que, segundo eles, fornece droga para a cracolândia. Leandro ao ver os policiais, correu assustado e entrou em um barraco próximo, para onde os policiais o seguiram, entraram, aumentaram o volume de um som ao máximo e o torturaram com um martelo durante cerca de uma hora e meia, segundo relataram moradores ao veículo El País. Moradores mencionaram também ao veículo que o Chiclete, apelido pelo qual era conhecido, não era traficante e nunca tocou em uma arma, apesar de a versão da polícia afirmar que houve troca de tiros e que o jovem ao ser atingido teria sido socorrido rapidamente.
O Brasil vive, com a guerra contra as drogas, uma política de encarceramento em massa da população majoritariamente negra e periférica, que não só contribui para a superlotação carcerária e condições subumanas nos presídios brasileiros como para a injustiça acerca de tratar usuários de drogas, que é uma questão de saúde pública e não criminal, como traficantes. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) realizado em 2014, o déficit de vagas nos presídios brasileiros chega a 231.062 (376.669 vagas para 607.731 presos), ou seja, em um espaço para 10 presos, há em média 16, e 67% desta população presidiária é negra, 53% possui ensino fundamental incompleto e 27% estão presos por tráfico de drogas. Mas por que a maior parte dos presidiários é pobre e negra? Só pobre trafica? E todos os presos por tráfico são realmente traficantes? O Artigo 33 da Lei nº 11.343 de 23 de Agosto de 2006 da Lei Antidrogas diz que “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” é crime, mas não especifica quantidades para determinar se o indivíduo é usuário ou traficante, deixando por conta do julgamento estabelecer isso, abrindo assim brecha para a prática de preconceitos de acordo com a etnia, aparência física e condição social do indivíduo.
Ao contrário do que se pensa, a maior parte dos usuários de drogas pertence à população rica do país, como revela uma pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas em 2007, que diz que 62% dos usuários pertence a classe A brasileira, que quando se encontram em situação de vício, possuem condição financeira e estrutura familiar concreta para recorrer a tratamentos, e não são tratados como traficantes, apesar de muitas vezes serem. O traficante pode não ser a figura que a população está condicionada a ver já que narcotráfico é um negócio extremamente lucrativo, e o que vemos é apenas a ponta do iceberg.O traficante é rico, branco e não mora na favela.
A posição tomada pelas leis brasileiras é conservadora, mas enxerga a solução óbvia que é a legalização, porém pessoas influentes são beneficiadas pelo tráfico de narcóticos e acabam tornando mais difícil a luta contra ele. A proibição não é contra a substância em si, e nem contra todos os usuários, mas apenas contra os usuários pretos, pobres, favelados e carrega consigo a necessidade de os encarcerar já que são marginalizados pela sociedade, mesmo estes não sendo os únicos a consumirem essas substâncias. A criminalização gera o favorecimento de traficantes que, por sua vez, se tornam cada vez mais poderosos já que o dinheiro arrecadado com a venda de entorpecentes se transforma em financiamento de crime organizado, tráfico de armas e propina policial.
Ademais, as drogas trazem malefícios a saúde do usuário, contudo, isso não é o que os mata. Uma pesquisa feita pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) revela que 56% das mortes de usuários não corresponde a overdose, e sim o assassinato. A política de criminalização traz consigo o extermínio de usuários que, em sua maioria, sucumbem ao vício por conta de desestruturação familiar e problemas psicológicos. Em suma, o vício e a relação de incriminação para com o usuário de drogas tem fundamentos na desigualdade social e condição psicológica do indivíduo em questão, e não com ele consumir a substância de fato.
Em virtude disso, fica clara a necessidade de soluções emergenciais. A legalização das drogas tira da mão do narcotráfico o poder de controlar as substâncias de narcóticos comercializados ilegalmente. Quando se tornam legais, as substâncias podem passar a ser controladas por órgãos de saúde e o dinheiro da comercialização a ser investido em tratamentos e políticas públicas realizadas pelo Ministério da Saúde para diminuir o consumo e tratar dependentes químicos ao invés do investimento no crime organizado e em financiamento da corrupção policial. Porém, essa realidade se mostra distante da perspectiva brasileira, portanto uma solução seria a descriminalização, onde o usuário passaria a ser visto como dependente e não como traficante, e ajudado também por políticas públicas com programas de assistência psicológica e consultas médicas especializadas para tratar usuários de drogas e ex-presidiários detidos por tráfico e reinseri-los na sociedade através de qualificação para o mercado de trabalho, diminuindo também por consequência a superlotação nos presídios brasileiros.
Bruna Caetano
O texto foi escrito e entregue como trabalho final para a disciplina de leitura e produção textual, lecionada pelo professor Vitor Blotta para os alunos do primeiro semestre de jornalismo da ECA-USP. O texto não foi editado.