Na manhã do dia 28 de fevereiro de 1989, a capital venezuelana, Caracas, amanheceu um caos: milhares de pessoas na rua, lojas vazias e ruas fechadas com pneus queimados. Sem percebê-lo, a cidade acabava de presenciar o início de uma das suas maiores marcas sociais e históricas: o Caracaço. Em espanhol, a palavra Caracazo provém de uma mistura entre o nome da cidade e o sufixo -azo, que denota uma batida forte. O episódio foi uma repentina explosão social caracterizada pela participação massiva da população no saque de diversos estabelecimentos, não à procura de bens luxuosos, mas sim pela desesperada vontade de conseguir elementos básicos à sobrevivência: comida, roupas e eletrodomésticos, e que culminou com a morte de mais de 300 pessoas. O episódio tomou por surpresa o próprio país e o Mundo: uma nação até então pacífica passava por um momento que refletia anos de indignação social acumulada.

Para entender o que levou ao fato em si, é necessário deslocar-se um pouco no tempo. O país exportador de petróleo, fonte principal de sua renda até hoje e desde aquela época, enfrentava uma forte crise econômica, até então considerada a pior de sua história: um grande endividamento provocado pelo boom do petróleo nos anos 70 levou a uma grande instabilidade econômica, promovendo escassez e aumento da inflação, desvalorizando a moeda venezuelana. A queda só continuou à medida que o Estado aumentava sua arrecadação e gastos.

As medidas econômicas dos governos anteriores, como aplicação de controle cambiário e controle de preços, pouco ajudaram a melhorar a situação, levando, inclusive, a um maior envolvimento de políticos em escândalos de corrupção. Assim, quando a campanha eleitoral começou para o ano de 1989, muitos se voltaram para o candidato Carlos Andrés Pérez. Já havendo ocupado o cargo de presidente anteriormente, justamente na época do boom petroleiro, a imagem do governo do ex-presidente era de prosperidade: muitos viam nele a imagem de riqueza e progresso que a Venezuela possuía durante os primeiros anos de seu mandato anterior, que ocorreu de 1974 a 1979.

Impulsionado por uma intensa campanha política defendendo a inclusão e justiça social, Pérez, ou CAP, como ficou conhecido, foi eleito com um total de 3.879.024 de votos (52,91% dos eleitores), um valor alto que denotava um novo crescimento na expectativa populacional para seu mandato. Assumiu a presidência no dia 4 de fevereiro de 1989, e muito rapidamente iniciaram-se discussões a respeito de providências para melhorar o estado econômico do país.

Logo no dia 16 de fevereiro, o governo anunciou as novas medidas, conhecidas como “Pacote Econômico”, as quais previam, dentre outras mudanças, um aumento do preço da gasolina, elevando as taxas de juros e a passagem de transporte público. O polêmico pacote ia em função de conseguir um financiamento do Fundo Monetário Internacional.
Poucos dias após o anúncio dos ajustes, a população, principalmente a mais desfavorecida, começou a sentir o impacto do aumento dos preços provocado pelas medidas de Pérez. Assim, na madrugada do dia 27, imensas multidões de pessoas iniciaram um deslocamento das favelas e bairros periféricos da cidade, muitos deles localizados em morros que rodeiam o vale onde se encontra a cidade, até o centro, procurando realizar saquear lojas e supermercados para obter produtos da cesta básica e de uso diário, além de manifestar sua indignação com a situação que havia se instaurado.

As massas de pessoas que esvaziavam comércios, porém, não eram compostas por apenas um tipo de cidadão, pelo contrário, adultos, idosos e jovens faziam parte do contingente que desesperadamente retirava tudo aquilo que conseguia das estantes. Em poucas horas, a cidade encontrava-se completamente tomada por manifestantes e a polícia civil e o exército iniciaram manobras de contenção.

Inicialmente, os oficiais preocupavam-se em monitorar o deslocamento populacional. Porém, o número de pessoas e a intensidade eram tão grandes que iniciou-se uma verdadeira repressão dos manifestantes, acarretando na morte de mais de 300 pessoas e mais de 3000 desaparecidos, de acordo com jornais da época, como o conhecido El Nacional.

As forças armadas deslocaram-se também para as fronteiras entre a periferia e o centro da cidade, mantendo o ataque constante com armas de fogo para evitar qualquer deslocamento a mais de pessoas. Em um grande bairro da região Oeste da cidade, conhecido como “23 de enero”, os oficiais atiraram contra os prédios da área, conhecidos a cidade como “bloques” (blocos, devido à sua forma retângular). Os prédios, que abrigavam famílias de classe média baixa, sofreram com o impacto das balas e muitas delas perderam utensílios domésticos, tendo que deixar suas casas.

De acordo com entrevistados no bairro pela equipe do telejornal peruano Panorama, as
forças armadas mantinham fogo por acreditarem que, daqueles mesmos prédios, vinham franco-atiradores de grupos rebeldes.

Caracazo

Imagem divulgada pelo noticiário teleSUR, em análise sobre o
episódio, revelando o assassinato da população.

 

Após a dura repressão policial, a cidade sofria com o resultado da violenta explosão social. Instaurado um toque de recolher das 20 às 5 hs, o primeiro na história da cidade, as ruas ficavam vazias. Os policiais passaram a revistar casas de famílias em busca da mercadoria que havia sido roubada e na tentativa de prender possíveis suspeitos.

No decorrer dos dias seguintes, porém, quando a população podia circular, lotavam-se novamente alguns comércios, não mais para furto de produtos (embora ainda ocorressem) e sim para quilométricas filas de pessoas procurando alimentos, uma vez que a cidade inteira havia sofrido o impacto das depredações. Alguns cidadãos entrevistados nas filas relataram a situação (fazer fila para comprar comida) como “insólita” e algo “nunca antes visto”. Durante dias a cidade sofreu com a inconstitucionalidade, marcada por perseguições políticas, militarização, escassez e morte de civis inocentes. As manifestações concluíram oficialmente no dia 8 de março, nove dias após o início dos protestos, mas não se limitaram apenas à cidade de Caracas, estendendo-se por outros estados do país, revelando um verdadeiro contexto de crise social.

O massacre é, até hoje, um dos mais violentos na história do país e o marco de uma geração inteira, sendo foco de violação de direitos humanos e de forte repressão policial, tido como o reflexo de um descaso amplo e contínuo dos mandatários venezuelanos com a sua população que, ao longo dos anos, sofreu com diversos escândalos de corrupção e um aprofundamento da crise econômica. Além dos alarmantes números de mortos e feridos, as perdas materiais foram exorbitantes, e a popularidade do presidente que foi visto por muitos como uma saída, despencou, chegando a ser uma das figuras mais polêmicas da história da política venezuelana, sofrendo anos depois uma tentativa de golpe de estado liderada por membros de altos comandos militares, dentre eles o futuro presidente do país, Hugo Chávez. Pérez teve eventualmente seu mandato revogado por envolvimento em grave casos de corrupção.

Um episódio traumático para a Venezuela, mas que também revela contextos e realidades até então distantes que se repetem até hoje: durante o governo do atual presidente Nicolás Maduro ocorreram episódios semelhantes, com revoltas populares e furtos em massa, além das grandes filas diárias em supermercados populares, devido à grave crise econômica que o país enfrenta e a uma severa escassez, com uma inflação que alcançou os 800% em 2016 e um encolhimento do PIB de 18,6%, de acordo dados preliminares do Banco Central Venezuelano divulgados pela agência de notícias Reuters. Momentos de desequilíbrio são constantes no período atual, o que revela a grande importância desse fenômeno na história do país, e que se repete de forma sintomática em uma sociedade instável, algo muito característico de países latino-americanos.

Daniel Medina

O texto foi escrito e entregue como trabalho final para a disciplina de leitura e produção textual, lecionada pelo professor Vitor Blotta para os alunos do primeiro semestre de jornalismo da ECA-USP. O texto não foi editado.

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