Nos dois primeiros meses deste ano a polícia militar foi autora do maior número de homicídios na cidade. Em 2015, um em cada quatro assassinatos no Estado foi causado pela polícia
Homens jovens, periféricos e negros. Segundo estudo realizado em 2014 pela pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, da Faculdade Federal de São Carlos (UFSCar), é esse o perfil da maior parte das pessoas vitimadas em ações policiais no Estado de São Paulo. A pesquisa analisou relatórios policiais entre os anos de 2009 e 2011, e concluiu que 61% dos indivíduos mortos nessas ações eram negros. Outro fator que chama atenção é a faixa etária das vítimas: 57% tinham menos de 24 anos. Para Sinhoretto, porém, os números não significam que jovens negros cometam mais crimes, mostram, contudo, que é essa a face mais passiva a vigilância por parte da polícia. “Eles descrevem características que estão muito associadas com a racialidade, e completa “Não é possível, entretanto, analisar se os negros cometem ou não mais crimes”.
O estudo traduz ainda que as grandes disparidades nos episódios de ‘violência-morte’ envolvendo pessoas brancas e negras servem para demonstrar com clareza. Uma espécie de “racismo institucional” presente nas esferas de segurança pública.
O caos em cifras
Na guerra travada em morros e vielas não há vencedor: Ao mesmo tempo em que somos o país onde civis mais morrem pelo gatilho da polícia — em média nove por dia —também somos o que mais mata policiais no mundo, um a cada 24hrs. É o que apontam os dados extraídos no 10° anuário brasileiro de segurança publica, datado de 2016.
Para se ter uma ideia da gravidade do assunto tratado, fazemos o comparativo entre o
número de pessoas mortas pela polícia paulista no ano de 2015 e a quantidade de habitantes no pequeno município de Nova Castilho, oeste de São Paulo. Enquanto nesse ano o local abrigava 1.217 moradores, o braço armado do Estado matou 412 pessoas. Em números absolutos, é como se a força policial do Estado tivesse dizimado 30% da população de seu menor município em apenas 12 meses.
Ainda se tratando de 2015, a polícia foi responsável por ¼ de todos os assassinatos cometidos na cidade, segundo um levantamento com base em quatro mil boletins de ocorrência, realizado pelo portal de notícias da Globo, G1. Comparando os dados atuais com anos anteriores, nota-se um vertiginoso crescimento no número de óbitos do gênero. Enquanto em 2005, 5% dos homicídios tinham como autor um policial, dez anos depois esse número quintuplicou.
Na narrativa ascendente da violência urbana, os números continuam amedrontando; Somente nos dois primeiros meses de 2017, segundo informações do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), em São Paulo, as mortes provocadas pela Polícia Militar superaram o índice de homicídios cometidos por pessoas comuns.
A validade dos índices
Não bastassem as colossais cifras relacionadas aos homicídios registrados no Estado, coloca-se em xeque a veracidade que esses números têm em traduzir o que acontece de fato. A classificação que se dá a um crime pode mascarar, propositalmente ou não, a verdadeira versão dos fatos. Por exemplo, uma morte cujas circunstâncias não estão bem esclarecidas a priori, ou que não tem um suspeito definido, pode ser= classificada no relatório policial como “morte suspeita” ou ainda como “confronto entre suspeitos e policiais de folga”, não entrando nos cálculos oficiais como homicídios, mesmo havendo a possibilidade de que sejam.
Outros mecanismos que dificultam a transparência na divulgação de tais dados também podem implicar no sombreamento das informações que, em tese, devem ser de saber público.
Desde 2016, por exemplo, a SSP (secretaria de segurança publica de São Paulo) colocou sigilo em todos os boletins de ocorrência do estado, sob a alegação de proteger dados pessoais dos envolvidos nas ocorrências. Para o professor de direito constitucional da PUC-SP, Estevam Serrano: “O que se quer fazer com isso é acobertar o cometimento de ilicitudes pelo Estado, a meu ver. Porque fazer pesquisas em boletins de ocorrência é instrumento para aferir uma série de questões relativas, por exemplo, à violência policial, abusos do poder estatal ou à letalidade da polícia”, declarou em entrevista a EBC.
Por trás da farda
Os fatos nos imputam que a escandalosa letalidade da polícia, no Brasil, não é mero acaso. Pelo contrário, as peças que constroem o perfil daqueles que são condicionados a acreditar ter por função agir como filtro de estratos sociais, possuem definições mais vastas do que no geral se coloca. Para Atila Roque, presidente da anistia internacional do Brasil, condutas historicamente adotadas pelas corporações policiais podem ajudar a desvelar um pouco da violência que presenciamos corriqueiramente. Em entrevista ao órgão que preside, declara que “a doutrina de segurança pública estruturada desde sempre por uma lógica de repressão e controle das ‘classes perigosas” é fator preponderante nos episódios noticiados. Aquém, o “despreparo técnico e psicológico” dos agentes envolvidos também corroboram a problemática.
Mais que supervisionar e duvidar da cidadania de indivíduos essencialmente marginalizados no panorama social, a caça às bruxas engendrada pelas instâncias de segurança do Estado determina a síntese de comunidades divididas em castas, onde o valor da vida pode ser timbrado pela cor da pele ou a posse de bens.
Os indivíduos que compõem as ditas “classes perigosas’’ são exaustivamente perseguidos e julgados pelo próprio papel que sua figura representa. No ‘modus operandi’ das catedrais de polícia, o criminoso já está definido antes mesmo de praticar o crime. Sua existência o denuncia. É nessa vertente que trabalha a mestre em história social Vera Malaguti, quando declara que os constantes ataques a população de traços periféricos produziu, ao longo do tempo, a cultura de um “duplo padrão de cidadania” que age como “oficiosa licença para matar” aqueles que não gozam de uma
complacência geral.
A quem a polícia protege?
No ambiente não ideal onde o respeito muitas vezes é alcançado pelo medo, abre- se campo para a discussão acerca da confiança da população para com as instituições de segurança pública, cuja função oficial é proteger e garantir a integridade dos cidadãos.
Ainda não figuramos um espaço onde as funções oficiais são colocadas em prática. Os verdadeiros laços historicamente construídos entre polícia e população divergem muito do que poderia ser considerado razoável: Em pesquisa feita pelo Datafolha, em 2015, 60% dos paulistanos diziam ter mais medo do que confiança na polícia.
O descrédito e temor por parte do indivíduo com as corporações do estado que o representa não é em grau algum mera casualidade. São, porém, produto dos conflituosos episódios de violência que constroem o dia a dia de boa parte das pessoas, em especial as mais pobres, que são também as que mais têm medo.
A luz de tal descrença e insegurança o real valor das corporações policiais passa ser questionável: Se o ofício principal de proteger o povo e combater o crime não raras vezes é violado ou toma o sentido oposto, a quem está servindo a polícia?
A resposta dessa pergunta não pode ser simplificada. Não se trata de um julgamento superficial com o objetivo de estabelecer a serventia de uma categoria financiada pelos tributos da população, mas sim de causas mais profundas que se relacionam com os motivos pelos quais as corporações policias tantas vezes atuam de maneira a fugir de sua conduta ética.
Os dados ligados a desigualdade social, a questão racial e o perfil das vítimas do Estado trazem a tona que tais fatores são peremptórios ao se direcionar o gatilho na direção de um indivíduo. Torna-se evidente que a violência como um todo está intrinsecamente a par de uma estrutura social vigente, onde ricos e pobres, brancos e pretos ou homens e mulheres recebem tratamentos inegavelmente diferentes; senão opostos.
Em países ditos desenvolvidos e que possuem melhores e mais adequadas condições sociais, — e consequentemente menor desigualdade — acesso a educação, cultura e saúde, os episódios de violência, não só policial, mas geral, tendem ter proporções majestosamente menores em vista de outras nações de estrutura mais precárias.
No ano de 2014, por exemplo, a polícia Britânica atirou em duas ocasiões, sem matar ninguém. A explicação de tal dado, que para nós aparenta ser algo distante de qualquer coisa que conhecemos ao se tratar de segurança pública, conversa com uma estrutura social completamente distinta, além um conjunto de leis que restringem o uso de armas letais até mesmo pelas autoridades policiais.
É fundamental pensar que não é sequer razoável fazer juízo de valor em dois cenários de dimensões imensuravelmente diferentes, todavia tal reflexão pode nos ajudar a entender e trabalhar em mudanças na principal instituição que não só sustenta, mas também tenta justificar a violência policial: nossa histórica desigualdade socioeconômica. Se hoje temos a consciência de que pertencemos uma sociedade inegavelmente hostil e violenta, também é preciso que busquemos conhecer as raízes de tais enfermidades, para que, enfim, possamos atacar as causas deixando de contemplar seus efeitos.
Matheus Oliveira
O texto foi escrito e entregue como trabalho final para a disciplina de leitura e produção textual, lecionada pelo professor Vitor Blotta para os alunos do primeiro semestre de jornalismo da ECA-USP. O texto não foi editado.