*autor Camilo Vannuchi

“O espaço público: perpetuado, ampliado e fragmentado”- Bernard Miège

Bernardo Miège, professor da Univeridade de Grenoble (França), escreveu este texto em 1991. Nele, Miège analisa o espaço público e dialoga com Habermas para problematizar as relações entre o “agir comunicacional” e a conformação do espaço público, buscando estabelecer qual influencia qual e de que maneira. Nesse processo, o autor diagnostica o que ele chama de “excessos de fluxo mediático” e certa “fragmentação” excessiva na imprensa. Miège propõe, em seguida, um “desvio pela história”: um percurso pelas fases ou etapas da imprensa a fim de recompor as diferentes formas de inserção no espaço público desde meados do século XVIII. As quatro idades da imprensa, que o autor apresenta como “os quatro modelos de comunicação”, são a principal contribuição do texto de Miège, e neles vamos nos deter.

Fase 1: A imprensa de opinião

Meados do século XVIII. Em torno dela se organizam os espaços públicos nas primeiras sociedades democráticas. Sua plataforma ou suporte são jornais artesanais, de tiragem reduzida e circulação limitada, com periodicidade irregular e número de páginas variável, quase sempre sustentados por confrarias de leitores ou grupos políticos. Caracteriza-se por um estilo virulento, afeito a polêmicas, politicamente engajado. O que é publicado nos jornais suscita debates e estimula os cidadãos a confrontar opiniões nos cafés e salões literários.

Fase 2: A imprensa comercial

Meados do século XIX. Imprensa de “massa”, orientada para o lucro, organizada sobre uma base industrial (em contraponto à estrutura artesanal anterior). A publicidade é dissociada da redação. O tom polêmico dos textos de cunho político vai sendo substituído por um tom mais discreto, dissimulado. Surge a divisão entre opinião e informação. A imprensa busca se profissionalizar.

Fase 3: Mídias audiovisuais de massa

Meados do século XX. O jornalismo é agora fundamentado em elementos do espetáculo. Influencia o entretenimento e é influenciado por ele. É a época da formação e ascensão da televisão. “Há uma primazia das normas do espetáculo e da representação, em detrimento da argumentação e da ‘expressão'”, diz Miège.

Fase 4: Comunicação total

Final dos anos 1970. A comunicação está em todos os espaços e incide de forma relevante na economia. Predomínio das técnicas de gestão, das tecnologias de comunicação e de um agir estratégico que busca “conseguir adesão”, “formar audiências”. Marketing. Cidadãos convertem-se em consumidores.

Obs: “A emergência de um modelo novo não conduz ao desaparecimento dos modelos surgidos anteriormente; assistimos de algum modo a uma justaposição dos modelos, mais do que uma tutela dos ‘dominados’ pelo ‘dominante’.”


“A mentira: um capítulo das relações entre a ética e a política”- Celso Lafer

O texto do jurista Celso Lafer, especialista em Hannah Arendt, integra o livro “Ética”, organizado por Adauto Novaes e publicado pela Companhia das Letras em 1992. Este livro reúne conferências feitas por 21 intelectuais em 1991, num ciclo organizado e promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, na gestão de Marilena Chaui como secretária e Luiza Erundina prefeita. As conferências foram feitas em São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte e Brasília. Entre os autores estão Antonio Candido, Sergio Paulo Rouanet, Paulo Sérgio Pinheiro, Renato Janine Ribeiro, Maria Rita Kehl e José Arthur Gianotti.

Observação minha (não há menção a isso no livro): A ocasião do ciclo de conferências coincide com a erupção de diversos movimentos pela ética na política, que acompanharam as denúncias de corrupção contra o então presidente Fernando Collor a partir do primeiro semestre de 1991. Em abril de 1992, Pedro Collor, irmão do presidente, faz importante denúncia à revista Veja. Em maio, surge o Movimento pela Ética na Política, com a participação de Betinho. O tema ganha força no debate público ao longo de todo o processo de impeachment, que culminaria na renúncia de Collor, em 29 de dezembro.

Lafer constrói um texto instigante sobre a mentira e o mentir, estruturado na disputa entre duas posições comumente defendidas na filosofia e na ciência política na modernidade, cada uma por uma tradição: “o direito de mentir do governante, em benefício da comunidade”, por um lado, e o “direito a uma informação exata e honesta dos governados”. (LAFER, 1992, p. 225).

A mentira do governante é justificada por Platão (século III a.C.), por exemplo, em “A República”, como ferramenta “benéfica como o remédio com que atalhamos o mal, quando a usamos contra os inimigos ou quando algum dos que consideramos amigos tenta praticar uma ação má, seja por efeito de um ataque de loucura ou de outra perturbação qualquer.” Nessa tradição, a defesa se dá quase sempre a partir da comparação entre o governante e o médico: o governante tem legitimidade para operar mentiras em processos de cura ou reabilitação, por saber o que é melhor para a pronta recuperação do paciente (no caso, o Estado, o país, a economia…). Essa compreensão, com variações, vai influenciar outros autores, como Maquiavel no Príncipe, e está na raiz da concepção da “ética de resultado”, ou da “ética de responsabilidade”, que Max Weber contrapõe à “ética de convicção” (a ser desenvolvido por Blotta). Resumindo de forma grosseira: uma mentira é defensável se o resultado for “a felicidade da maioria”, o “benefício da comunidade”, ou seja, o fim como justificativa para o uso de meios controversos.

O contraponto a esse pensamento remete a Aristóteles (século III a.C.), que já em “Ética a Nicômaco” trata da veracidade e caracteriza a verdade como nobre e merecedora de aplauso, em oposição à mentira, vil e repreensível. A obrigação da verdade, que Kant vai contemplar sob o conceito de imperativo categórico, perpassa a tradição judaica — “Existem sete classes de ladrões e a primeira é a daqueles que roubam a mente de seus semelhantes através da palavra mentirosa”, diz o Talmude (coletânea de livros que contém as leis, a doutrina e as tradições dos judeus) —, o Velho Testamento — “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo”, é um dos dez mandamentos —, e a doutrina católica expressa, entre outros, por Santo Agostinho e Antônio Vieira — “Os falsos testemunhos formam-se na língua; os juízos temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua há tão pouca distância, para que não haja testemunhos na língua, (Deus) proíbe que haja juízos temerários na imaginação”, diz Vieira.

E onde o jornalismo entra nesse debate? Na democracia, diz Lafer, o tema da transparência no poder ganha relevância, e nesse sentido nos aproximamos do debate sobre direito à informação. A opção de esconder a doença de Tancredo Neves produziu, de fato, um “mal menor”? Esconder ou dissimular índices de inflação é um mal menor em nome da estabilidade da moeda?

A concepção moderna de Estado democrático pressupõe que a coisa pública seja do conhecimento coletivo. Em outros termos, o que é de interesse público deve ser transparente. Já desde o final do século XVIII, os governados em regimes republicanos são entendidos como pessoas com direitos, e não apenas com deveres, de onde se conclui que já não cabe ao governante exercer o domínio da política por meio da ocultação de fatos e informações. Na declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, é explicitado o direito de opinião (artigo 10) e a livre comunicação de ideias e opiniões (artigo 11). Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o artigo 19 registra o “direito à informação” de modo a garantir o que Lafer chama de “igualitária participação da cidadania na esfera pública”.

(…) O princípio de visibilidade do poder é constitutivo, pois permite a informação sem a qual todos não podem formar uma opinião apropriada sobre a gestão da coisa comum, para, desta maneira, exercer o seu poder de participação e controle.

Neste sentido, o direito à informação dos governados contesta o direito de mentir dos governantes, forjado pela tradição da perspectiva ex parte principis, ao impor a verdade que, neste contexto, para recorrer com alguma liberdade a santo Tomás, é uma igualdade que se contrapõe ao mais (dos governantes) e ao menos (dos governados). Por isso, numa democracia, teoricamente, a publicidade e a veracidade são a regra, e o segredo e a mentira são a exceção. (LAFER, 1992, p. 233).


“Os elementos do Jornalismo”- Bill Kovach & Tom Rosenstiel

O livro resulta de uma iniciativa extremamente oportuna de um grupo de jornalistas preocupados com o futuro da atividade jornalística. Em junho de 1997, 25 dos mais importantes jornalistas dos Estados Unidos se reuniram em Harvard para discutir o que estava acontecendo com a profissão desde Watergate (1974). O que eles sabiam era que a imprensa norte-americana havia perdido credibilidade, que as pressões da área comercial eram enormes e que o público estava se afastando a passos largos dos jornais e outros meios de comunicação.

(…) O público desconfiava mais e mais dos jornalistas, chegando até a odiá-los. E a coisa ficaria ainda pior. Por volta de 1999, somente 21 por cento dos americanos achavam que a imprensa de fato estava preocupada com as pessoas, contra 41 por cento em 1985. Só 58 por cento respeitavam o papel de vigilância da imprensa, contra 67 por cento em 1985. Menos da metade, 45 por cento, acreditava que a imprensa protegia a democracia. Esse número era dez pontos percentuais mais alto em 1985. (p. 19)

O grupo intitulou-se “Comitê dos Jornalistas Preocupados” e realizou 21 fóruns nos anos seguintes, aos quais compareceram 3 mil pessoas. Esses fóruns, ao lado de depoimentos colhido de 300 jornalistas, renderam massa crítica para a elaboração do livro, publicado originalmente em 2003. Alguns afirmavam que o jornalismo havia se transformado em entretenimento e notícias sobre entretenimento.

Outros reclamavam por estarem muito mais absorvidos ou dedicados a balanços comerciais e tabelas de lucros e dívidas do que ao exercício do jornalismo. Havia ainda muitos que relatavam que a principal cobrança de seus patrões ou conselheiros não era em nome da qualidade do jornalismo produzido, mas sim em torno da saúde financeira, do lucro.

O contexto era de evidente gravidade, provocada por um conjunto de mudanças no campo do jornalismo. Um primeiro elemento desestabilizador era a submissão da produção jornalística à realidade dos grandes conglomerados voltados para o entretenimento e outras atividades econômicas. Ao mesmo tempo em que as fusões e incorporações serviam de boias de salvação para redações em processo de falência, elas passaram a trazer problemas sérios de valores. Por um lado, a ética do mercado prevalece sobre a ética do jornalismo. Num cenário em que já quase não há jornalistas no comandos das principais empresas de comunicação, a busca exclusiva da audiência, da venda, do espetáculo, torna-se mais comum do que a busca pela informação qualificada, pelo debate consistente, pelo interesse público, e o “patrão” do jornalista deixa de ser o leitor/espectador/cidadão para ser, com rara exceção, o investidor e o anunciante. Como fazer a cobertura de empresas que fazem parte do grupo ou que, por meio dos anúncios, garante seu salário e a sobrevida de seu jornal por mais três ou quatro meses?

Nesse processo, o departamento dedicado ao jornalismo dentro de uma mega-
empresa se dilui na vasta operação dos conglomerados. O livro é contemporâneo, por exemplo, da incorporação da Time Warner pela America Online (AOL), da compra da ABC News pela Disney e da aquisição da NBC pela General Eletric. O resultado disso é que a ABC representa menos de 2% dos lucros da Disney, igual à fração do lucro da General Eletric trazida pela NBC.

Em razão disso, os autores chegam a conclusões como a de que o cerne da atividade jornalística não depende tanto de imparcialidade ou neutralidade, como costuma inferir o senso comum, mas independência.

Pela primeira vez em nossa história, mais e mais as notícias são produzidas por empresas não-jornalísticas, e esta nova organização econômica do setor é inquietante. Existe o risco de que a informação independente seja substituída por um comercialismo egoísta fazendo pose de jornalismo. Se isso acontecer, perderemos a imprensa como uma instituição independente, livre para vigiar as outras poderosas forças e instituições existentes na sociedade. (p. 24).

Os autores propõem nove pontos orientadores:

1. A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade.

2. Sua primeira lealdade é com o cidadão.

3. Sua essência é a disciplina da verificação.

4. Seus praticantes devem manter independência daqueles a quem cobrem.

5. O jornalismo deve ser um monitor independente do poder.

6. O jornalismo deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público.

7. O jornalismo deve empenhar-se para apresentar o que é significativo de forma

interessante e relevante.

8. O jornalismo deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional.

9. Os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência.

Ao longo do livro, no entanto, o que merece destaque é justamente a análise da relação entre as áreas editorial e comercial. Em resposta à concepção formulada nos anos 1920 por Henry Luce, fundador da revista Time, de que a redação e o departamento de publicidade não deveriam se misturar — como Igreja e Estado na expressão cunhada por ele —, Kovach e Rosenstiel buscam desmontar a tese de que os jornalistas devem “ficar atrás de uma parede que os proteja da área comercial”. Ou usar elevadores distintos dos usados pela equipe de vendas, como fez Robert McCormick, publisher do Chicago Tribune, no prédio do jornal. A questão, aqui, não é defender um jornalismo impregnado por interesses escusos, mas apontar outros caminhos para que a independência seja assegurada. O essencial, eles dizem, é que, no longo prazo, a melhor estratégia financeira da empresa jornalística é colocar seu público, os cidadãos, acima dos interesses políticos ou financeiros da empresa. A indústria do jornalismo só será capaz de garantir credibilidade e, assim, prosperar com sustentabilidade, se souber transmitir independência e conquistar confiança.

Um compromisso com os cidadãos é mais do que egoísmo profissional. É um acordo implícito com o público que garante aos leitores que as críticas de filmes são honestas, as críticas de restaurantes não sofrem influência dos anunciantes, a cobertura em geral não reflete interesses particulares, nem é feita para agradar amigos da casa. A noção de que os jornalistas não devem encontrar obstáculos na hora de cavar a informação e contá-la com veracidade — mesmo à custa de outros interesses financeiros do dono do jornal — é um pré-requisito para dar as notícias não só com exatidão, mas também de forma convincente. É dessa maneira que nós, cidadãos, acreditamos numa empresa jornalística. É essa a fonte de sua credibilidade. É, em resumo, o maior patrimônio da empresa e daqueles que nela trabalham. (p. 83).

O diagnóstico da cisão entre redação e departamento comercial é de que ele teria cooperado para a abertura de um fosso que nada tem de produtivo. Foi construído sobre alicerces que nem sempre têm a ver com o desafio concreto da atividade jornalística. “Para que serve o jornalismo se não se vendem jornais?”, questionam os autores (p. 95), com razão. Há problemas, é claro. Um deles, segundo Kovach & Rosenstiel, é o modelo de participação nos lucros adotado por parte das empresas. “Ao amarrar a renda pessoal dos jornalistas aos resultados financeiros da empresa, acaba-se por mudar a lealdade do profissional”, dizem. “A empresa está explicitamente dizendo que uma boa porção dessa lealdade deve ser dedicada a ela e aos seus acionistas — em vez de aos leitores, ouvintes ou espectadores.” (p. 96).

O que os autores propõem, sobre isso, é que toda a empresa jornalística conceba o cidadão como patrão, e não apenas o profissional de redação. Isso inclui o dono da empresa. A provocação é pertinente.

O que acontece se um anunciante deixa bem claro que vai gastar mais dinheiro em publicidade desde que a cobertura de um determinado assunto fique mais suave, ou que um repórter seja demitido ou mudado de departamento? Quando, por exemplo, algum anunciante exigiu melhor cobertura de práticas empresariais corruptas ou fixação de preços? Como dar a informação sem temor ou favoritismo quando os donos dos jornais estão dizendo aos editores que um dos objetivos prioritários é fazer mais dinheiro neste trimestre? (p. 96).

Bibliografia:
MIÈGE, B. O espaço público: perpetuado, ampliado e fragmentado. Novos Olhares. São Paulo, n.o 3, p. 4-11, 1999.
LAFER, C. A mentira: um capítulo das relações entre a ética e a política. In:
NOVAES, A. (org.). Ética. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura; Companhia das Letras, 1992. p. 225-237.
KOVACH, B; ROSENSTIEL, T. Os elementos do jornalismo. 2a edição. São Paulo:
Geração Editorial, 2004.
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