Daniele Ferreira Seridório
Em setembro de 2014, na comum apoteose que ocorre ao final dos desfiles de moda, as modelos entraram na passarela da Chanel desfilando algo além das roupas: megafones, palavras de ordem e cartazes com revindicações feministas. Naquele dia, no Grand Palais, em Paris, as revindicações políticas foram colocadas à venda e desfiladas assim como as roupas, que mais tarde vestiriam os membros das classes mais exclusivas do mundo.
Manifestar-se estava na moda, e o sistema hipermoda (LIPOVETSKY e SERROY, 2015) tratou de usar a estética dos movimentos sociais para suprir a renovação de produtos, mantenho o imperativo do Novo (LIPOVETSKY e SERROY, 2015). Por obedecer à efemeridade da moda, a mensagem e imagens do desfile acabaram renovadas e substituídas, mas, por mais que tenham se propagado e diluído rapidamente, as manifestações do início da década 2010 marcaram profundamente a política, mas questionamos se os próprios protestos não são hoje como um desfile, com performances e produtos à venda.
A modelo Gisele Bündchen desfila e protesta no “”Chanel fashion protest” em 30 de setembro de 2014 [Valerio Mezzanotti/ New York Times]
Os manifestantes que saíram às ruas na Primavera Árabe e em 2013 no Brasil se rebelaram por diversos motivos, não apenas pobreza, crise econômica ou falta de democracia, mas também a “humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder […] que uniu aqueles que transformaram o medo em indignação, e indignação em esperança” (CASTELLS, 2013, p. 12).
Houve causa política inicial, se mais tarde os movimentos perderam seu significado político e foram comparados a massas, talvez seja pela própria estratégia que tiveram de rejeitar liderança ou organização formal, o que dificultou a comunicação com o Estado e com a mídia. Naquele momento era difícil entender que não havia liderança, ainda assim, os que buscavam com quem falar, eram muito menos numerosos que os que não quiseram ouvir.
A mídia precisava de um personagem responsável, inicialmente eram os líderes do MPL (Movimento Passe Livre), mas quando as passeatas ficaram marcadas pela ação dos Black Bloc, esse símbolo do líder se perdia. Para protestar, os participantes do Black Bloc usavam máscaras e vestiam preto, como tática, a violência: depredavam bancos, prédios do poder político e jogavam pedras da polícia.
Para Solano (2014, p. 22), o Black Bloc é “o sintoma de um país que se asfixia no seu descrédito absoluto no Poder Público”. Durante um ano, Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entrevistou pessoas que praticavam a tática Black Bloc, grupo que era notadamente diferenciado pela mídia dos manifestantes “do bem”, eles os “vândalos”.
Manifestante mascarado na greve dos professores do Rio de Janeiro. [Yasuyoshi Chiba/VEJA]
Não era fácil comunicar-se com eles, o Black Bloc se expressa pela violência. “O discurso é de que a verdadeira violência é a do sistema político que não dá resposta para a população […] Para eles, a violência é a do sistema, e o que fazem é chamar a atenção para essa violência política e corporativa” (SOLANO, 2014, p. 41). Havia também discurso político, o símbolo do anarquismo aparecia nas manifestações, e Solano identificou em suas entrevistas, que a maior parte dos jovens tem um pensamento definido como fundamento de suas ações. A questão era, porque apostavam na violência como maneira de se comunicar?
Se já era difícil encontrar comunicação na violência, o Estado ainda funcionava em outra temporalidade, a da instância da palavra impressa, regida por Diários Oficias – que não são publicados aos finais de semana e feriados. “O tempo da sociedade não mais se coadunava com o do Estado. Fossem quais fossem as reivindicações e as queixas, o grande estrondo veio desse desacerto” (BUCCI, 2016, p. 80).
A inicial causa da explosão popular foi o aumento da passagem do transporte público, o Estado soube atender essa reivindicação, mas a manifestações continuaram e as queixas multiplicaram-se. Ficou claro que já não havia mais controle quando a medida da violência da polícia foi negociada nos editorias da Folha e do Estado de São Paulo.
Bucci (2016) analisou a disputa de significados nos editorais e apontou como eles acabaram invertendo o curso dos acontecimentos. Inicialmente, pediam à prefeitura e à força policial um ponto final, pois a “população que o fim da baderna” . A repressão polical pesou como pediram os textos, “homens fardados deflagraram uma sessão animalesca de espancamento contra uma passeata pacata no centro de São Paulo” (BUCCI, 2016, p. 58). Foi um tiro no próprio pé, 7 jornalistas da folha de São Paulo ficaram feridos, entre eles, uma repórter fotográfica quase perdeu a vista devido a um tiro de bala de borracha no olho esquerdo.
Não somente a repressão policial foi negociada pelo jornalismo. O Black Bloc, não conseguia conter a ação de baderneiros infiltrados, virou um fetiche e foi vendido como mercadoria jornalística e política (SOLANO, 2014). A Veja conseguiu, inclusive, eleger um símbolo sexual entre mascarados, Emma. Quando entrevistada pelo jornalismo Willian Novaes, Emma afirmou que sua cabeça valia um prêmio, a exposição midiática a afastou também dos Black Blocs, o texto publicado pela revista destruiu sua reputação, segundo Novaes (2014).
Talvez, as pessoas não tenham entendido a mensagem dos Black Blocs porque além de ser violenta ela apostava em imagens e representações que seriam transmitidas pela mídia. “Eles dizem que o que fazem não é violência, é performance – é um tipo de espetáculo, em que querem atingir símbolos para chamar a atenção” (SOLANO, 2014, p. 41). O banco era símbolo do capital, o prédio da prefeitura e a PM eram o Estado.
“A autodefinição é simples: uma forma de protesto, uma estratégia, fundada na violência-espetáculo, na violência comunicativa” (SOLANO, 2014, p. 76). Essa estratégia atraía câmeras, e as câmeras davam visibilidade midiática a esses meninos e meninas. “Os protestos desorganizam o ordenamento linguístico urbano pra tornar visível a dissidência […] pois só quando atraem o olhar cumprem a meta de se afirmar como crítica do poder” (BUCCI, 2016, p. 31).
A visibilidade gira em torno de uma infraestrutura midiatizada (VOIROL, 2005), e a ação direta dos Black Blocs é uma linguagem específica que buscava essa visibilidade. “Muitos dos protestos Black Blocs parecem cerimônias […] Toda uma mise-em-scène que atrai flashes, capas, manchetes. Poderia ser de outra forma numa sociedade que deglute os acontecimentos como se fossem meros espetáculos?” (SOLANO, 2014, pp. 77 – 78).
A imprensa utilizou comercialmente os Black Blocs, e os Black Blocs usaram a imprensa para conseguir visibilidade. Perceberam que a violência na periferia não era recebida com estranheza, mas quando ela ocupa a Avenida Paulista, há plateia e cobertura jornalística. O ruído comunicativo foi o uso excessivo de imagens e fotografias.
As imagens, mais entregues às demandas inconscientes (do desejo), costumam dizer o oposto do que pretende o discurso das palavras escritas, mais atadas à pretensa consciência, quer dizer, a propósitos formulados por intenções morais postos como ideário no plano na consciência. Onde a palavra pontifica, a imagem trai (BUCCI, 2016, p. 135).
Quando as manifestações se espalharam pelo Brasil, tendo perdido de vista o aumento da passagem e incluindo diversas outras pautas, a tática do Black Bloc já não fazia mais sentido, não eram mais somente os meninos da periferia que protegiam os manifestantes do MPL da ação policial e depredavam prédios públicos e privados. A classe média também saiu protestar, o coro mudou, os manifestantes pediam “sem violência”.
Ainda não aprendemos com 2013, não houve uma discussão sobre o uso da violência em protestos. Os Black Blocs tiveram fôlego até 2014, durante os protestos contra a Copa, mas depois disso muitos foram identificados e perseguidos pela polícia, a tática não era bem aceita, a violência despertava medo, claramente. A mensagem não foi compreendida.
O debate sobre o uso da violência em protestos voltou em 2015 e 2016, com a agitação popular frente à crise política. As manifestações apostavam em estéticas diferentes, enquanto um lado escolhia símbolos do patriotismo e o verde e amarelo, o outro vestia camisetas de partidos e a cor vermelha. Enquanto em 2013 pareciam estar todos do mesmo lado, a divisão entre esquerda e direita foi clara nos anos seguintes. O clima de polarização e falta de diálogo persistiam, antes Estado não dialogava com os manifestantes, agora, não há dialogo entre a sociedade.
A coreografia da dança do impeachment. [BBC Brasil]
Os protestos pró-impeachment modificaram o que se costumava ver em uma manifestação. Ainda havia palavras de ordem e símbolos escolhidos – o pixuleco, o pato da FIESP e até uma coreografia do impeachment – mas o próprio ritmo da caminhada e a interação amigável entre manifestantes e policias indicavam algo muito diferente do que aconteceu em 2013.
Os participantes desfilavam pela Avenida Paulista assim como as modelos no Grand Palais. Não havia confronto simbólico ou físico, as passeatas ocorriam aos domingos e os participantes tiravam selfies com os policias. Se em junho políticos e bandeiras de partidos não eram bem vindos, três anos mais tarde representantes de partidos da então oposição ao governo federal subiam nos trios elétricos para discursar. Os movimentos que organizavam as passeatas lucravam vendendo kit do impeachment na internet, o uniforme para o manifestante “do bem”. Se os Blak Blocs foram vendidos pela mídia como fetiche, os pró-impeachment foram comercializados como um pacote pelos próprios organizadores.
Kit foi vendido por 175 reais. [Buzzfed]
Não havia transtorno no ordenamento linguístico urbano, “ao marchar descontraidamente sobre o asfalto, reforça em termos teatrais a posse que já é sua por privilégio” (BUCCI, 2016, p. 32). Era uma manifestação contra presidenta Dilma, mas que também reafirmava status quo. Havia muita cobertura midiática desses protestos, alguns veículos enfatizavam como os manifestantes “do bem” não se valiam da ação direta para sua reivindicação. Não foi uma discussão sobre uso da violência nos protestos, foi uma conclusão: porque os Black blocs precisam depredar o patrimônio público e privado, se os que vestem verde e amarelo conseguem comprovar seu ponto pacificamente?
Não queremos defender a violência, mas reiterar que quando a caminhada é pela manutenção do status quo tem-se visibilidade na mídia mesmo sem contradição, sem confronto. A grande mídia é o establishment, por isso mesmo é chamada de tradicional.
Algumas análises pregam que a internet iria modificar o modo de manifestação, dar força as vozes invisíveis. 2013 e 2016 indicam que a legitimidade ainda está na mão da grande mídia. A internet questiona, a televisão e o impresso respondem e fecham uma discussão que ml começou. Os movimentos sociais, apesar de usarem a internet para se organizar, ainda enxergam esse meio como um palco para alcançar os meios tradicionais (VEDEL, 2003).
Alguns memes ironizaram a falta de ação direta nos protestos recentes, mas essa discussão não foi levada a sério nas emissoras e redações. Quando Esther Solano, Bruno Paes Manso e Willian Novaes – escritores do livro “Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc” – foram entrevistados no programa do Jô, acabaram discutindo com o apresentador, que comparou o Black Bloc aos movimentos fascistas e nazistas, outro episódio lamentável foi a troca de xingamentos entre Willian Novaes e o Carioca, do programa de rádio “Pânico” da rede Jovem Pan.
Não queremos defender a violência, não concordamos com muitas ações da tática do Black Bloc, mas reconhecemos que havia discurso político, e que essa ação teve sua complexidade reduzida pela cobertura midiática. Não há diálogo na violência, mas ela foi para os meninos e meninas da periferia, que se vestiam como Black Bloc, a única alternativa para suas vozes silenciadas diariamente pelo Estado, pela sociedade e pela mídia.
O muro de Brasília separava manifestantes com revindicações distintas. [Sergio Lima/Época]
Talvez a questão chave para entender o Black Bloc seja porque enxergam na violência a única maneira de serem ouvidos? O mais irônico, é que algo extremamente perigoso liga o Black Blocs aos manifestantes pró-impeachment: o ódio. O ódio é a herança que tivemos de 2013 e 2016, o ódio ao governo e ao outro, o debate político está polarizado e cambaleando. O muro que separou manifestantes no eixo monumental em Brasília ainda existe na esfera pública.
*Daniele Ferreira Seridório- Mestre em Comunicação pela Unesp, campus Bauru. seridorio@gmail.com. Este ensaio é trabalho final da disciplina “Linguagens, Tecnologias e Sociedade” da Profa. Dra. Maria Cristina Castilho Costa. As observações e apontamento foram baseados na bibliografia indicada e nas discussões que ocorreram em sala de aula. Aproveito para agradecer aos colegas de sala e à professora pelas brilhantes contribuiçôes.
Referências Bibliográficas
BUCCI, Eugênio. A forma bruta dos protestos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança – movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013.
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras. 2015.
SOLANO, Esther. Parte 1: A pesquisadora. In Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc. SOLANO, Esther; PAES MANSO, Bruno; NOVAES, Willian. São Paulo: Geração Editorial, 2014.
NOVAES, Willian. Exilada pela causa. In Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc. SOLANO, Esther; PAES MANSO, Bruno; NOVAES, Willian. São Paulo: Geração Editorial, 2014.
VEDEL. Thierry. La citoyenneté et ses conditions d’expression L’internet et ses usages citoyens. Cahiers français, n. 316, 2003b.
VOIROL, Olivier. Les luttes pour la visibilité: esquisse d’une problématique. Réseaux, n. 129-130, pp. 89-121, 2005.