Por Eugênio Bucci
O drama do jornalismo é próximo àquele da pesquisa de campo nas ciências humanas, sobretudo na antropologia e, de modo específico, na etnologia: não há distinção clara entre o sujeito e o objeto. Um evolucionista que estuda uma espécie de cacatua australiana consegue dizer sem maiores embaraços qual é o seu objeto de estudo delimitando-o claramente. O objeto, a cacatua, é um bicho – o sujeito, o pesquisador, é outro. Ambos palram, mas na maior parte das vezes não se confundem. O mesmo ocorre com um astrônomo investigando a distância entre duas supernovas. Ou com o epidemiologista diante do vírus causador de uma doença tropical e com o matemático enfrentando a sua equação.
Nas ciências naturais e nas ciências exatas, a distinção entre sujeito e objeto é imediata, mas nas ciências humanas o que surge é antes um problema – não uma distinção. Foi com os etnólogos do século XX que a questão ganhou corpo. Para eles, o homem é ao mesmo tempo sujeito e objeto de estudo. E, muito embora haja a distância entre as culturas originais do pesquisador e do pesquisado, surge aí uma dificuldade nada desprezível para o estabelecimento da distinção categórica entre um e outro. Ambos, sujeito e objeto, ganham sua existência não na natureza, mas na linguagem, ou seja, no simbólico e, mais ainda, ambos se enxergam não como sujeito e objeto, mas como sujeitos que se olham como outros. Nada disso interes sa muito de perto à ética jornalística, mas ajuda a entender um pouco do mal-estar do repórter que miseravelmente procura ser objetivo. O jornalismo como técnica informativa é anterior à etnologia que ousou indagar-se a respeito do sujeito. Parece ter passado incólume por esse tipo de indagações. E dá sinais de que não se abala com elas. Mas sua meta de precisão do relato, se vista à luz da distância entre sujeito e objeto, ou melhor, à luz da proximidade extrema entre sujeito e objeto, assume a face de uma mistificação, uma declaração de vontade, uma profissão de fé. Na prática, o jornalismo sabe, a objetividade é redondamente impossível. Também na prática, contudo, todos continuam acreditando nela – e ela está no fundamento do pacto de confiança que a imprensa mantém com a sociedade.
O pacto tem contradições internas. Diferentemente do que ocorre com o antropólogo encarando o índio bororo sob o sol dos tristes trópicos, não há nenhum distanciamento cultural entre o homem que é repórter, o homem que é notícia e o homem que é destinatário da informação. De onde pode então emergir a objetividade? A objetividade é uma palavra que vem de objeto. Diz-se que tem objetividade o discurso em que se expressam as características próprias do objeto – e não as do autor do relato (o sujeito). O jornalismo, produto que é do senso comum moderno, adota a pressuposição tácita de que uma descrição pode ser objetiva, ou seja, pode ser inteiramente fiel às caracte rísticas do objeto, sem que o sujeito a deforme. E, de fato, há informações inteiramente objetivas. O anúncio pelo rádio de que neste momento preciso a temperatura na avenida Paulista, em São Paulo, é de 26 graus, é estritamente objetivo. E se basta. O placar de um jogo, zero a zero, também é uma informação objetiva. E também se basta. A notícia de que o presidente da República entrou em reunião com quatro de seus ministros no Palácio do Planalto há dez minutos é objetiva como as outras duas. Mas não se basta. Ela é uma informação que vem acompanhada de vazios informativos. Do que tratam na reunião? Que ministros são? Qual deles dá o tom das conversas? Quem tem a direção política dos trabalhos?
A objetividade passará a depender de iniciativas subjetivas daqueles que são notícia e estas, por sua vez, só podem ser observadas por habilidades também subjetivas daqueles encarregados de informar o público. Quanto menos elementares são as informações, mais elas dependem de aspectos subjetivos para se tornarem objetivas. Ora, o jornalismo não existe para dar a temperatura de uma avenida, ou o placar das partidas do campeonato paulista, ou a cotação das ações. Ele não foi inventado para isso, embora faça também isso. Ele existe para pôr as idéias em confronto, para realizar o debate público, para suprir os habitantes do planeta das notícias diversas de que eles passaram a precisar para mover-se e tomar decisões na de mocracia moderna. Existe para narrar a aventura humana no calor da hora, para difundir notícias. Mas quem produz as notícias são os homens, são sujeitos. O jornalista é portanto um sujeito falando de outro sujeito para um terceiro sujeito. Ou é um sujeito falando com outro sujeito sobre um terceiro. E um quarto. Rigorosamente, então, o jornalismo não tem objetos – só tem sujeitos. Os repórteres, editores, fotógrafos, os câmeras – todo mundo na imprensa –têm suas definições de foro íntimo, são idênticos aos seus objetos (ou melhor, aos sujeitos que lhes servem de objetos), isto é, são iguaizinhos àqueles que são notícia e àqueles que são leitores, telespectadores, ouvintes. Como é, então, que podem descrevê-los objetivamente?
A única resposta possível é subjetiva: depende de quem for o jornalista e de qual for a história a ser investigada e contada. A melhor objetividade no jornalismo é então uma justa, transparente e equilibrada apresentação da intersubjetividade. Quando o jornalismo busca a objetividade está buscando estabelecer um campo intersubjetivo crítico entre os agentes que aí atuam: os sujeitos que produzem o fato, os que o observam e o reportam, e os que do fato tomam conhecimento por meio do relato. Daí a necessidade de prestar atenção às convicções pessoais dos jornalistas. Por exemplo: como fica um repórter irlandês, católico, reportando um enfrentamento entre jovens irlandeses católicos e a polícia da rainha? Ou então: será que a promulgação de uma lei que dá aos cônjuges de uniões homossexuais os mesmos direitos de que já dispõem os casais heterossexuais será reportada do mesmo modo por um repórter que é um ativista gay e por um outro que, membro de uma ordem religiosa, tenha feito o voto de castidade?
Não há uma resposta técnica, impessoal. De novo, ela passa por prismas subjetivos. No caso da lei sobre os cônjuges de uma união homossexual, pode ser que o segundo repórter faça um trabalho melhor, exatamente porque não tem nenhum tipo de interesse direto na causa. Ou, não: pode ser que aquele que tem envolvimento direto com a matéria da lei trabalhe com mais afinco, ouça mais fontes, revele aspectos mais inusitados sobre a realidade dos casais gays. Quanto ao jornalista irlandês, e católico, ele não está de antemão impedido de testemunhar, apurar e relatar com brilho e competência uma batalha campal em que tomem parte seus compatriotas. Mas pode ser que sua condição o direcione para um ângulo mais, digamos, sectário – como t ambém pode ser que, na tentativa de evitar o partidarismo, ele seja acometido de uma neutralidade inumana, o que arruinará seu texto.
Aqui é preciso desmontar um pequeno tabu que paira sobre a correção na reportagem. Pensa-se e declara-se que as emoções atrapalham a precisão. É um erro. O bom jornalismo nada tem a ver com a indiferença, com a neutralização do sujeito. Como toda atividade própria da cidadania, ele se alimenta também de indignação. As emoções devem integrar a reportagem assim como integram a alma humana – e, de fato, estão presentes nas mais marcantes passagens do jornalismo, nos melhores textos, nas grandes manchetes, nas fotos que fizeram história. Uma das mais célebres reportagens de todos os tempos, Os dez dias que abalaram o mundo, que narra com precisão a tomada do poder pelos sovietes na Rússia em 1917, foi escrita por um repó ;rter americano, John Reed, que era um entusiasta das teses bolcheviques. Suas convicções pessoais pró-comunistas não lhe turvaram a visão e nem estragaram seu texto. Há mesmo situações em que a tentativa de isentar-se inteiramente de toda emoção produz um alheamento no repórter que, aí sim, torna imprestável o seu relato. Sem a indignação, o espanto, a surpresa não há reportagem. O que não significa que o estilo deva ser meloso ou, noutro extremo, vociferante. Ele não deve ser uma esponja embebida em adjetivos: a precisão jornalística requer realçar a emoção que move os acontecimentos. A objetividade possível não é portanto a correspondência fria de uma descrição a objetos inanimados ou inumanos, mas o impacto quente dos fatos produzidos por seres humanos no discurso i ninterrupto do jornalismo. Banir a emoção da informação é banir a humanidade do jornalismo. E é banir o público.
Os leitores, internautas, ouvintes e telespectadores reagem emocionalmente – com indignação, com surpresa, com asco ou comiseração – aos acontecimentos. Não se trata de irracionalismo. É legítimo que seja assim. Voltemos ao repórter irlandês. Se seu texto resultar glacial, simulando um distanciamento hermético do sujeito diante dos fatos, não conseguirá dialogar com o público e, se não dialoga com o público, o jornalismo é ruim. Por outro lado, se for um discurso inteiramente conduzido pela ira e pelo protesto, será ineficiente para transmitir os fatos – e será mau jornalismo também. A objetividade no jornalismo, que é intersubjetividade, não pede isenção total – pede equilíbrio. Nas duas hipóteses de desequilíbrio (excesso de frieza em relação ao público, ou excesso de emocionalismo também em relação ao público), pode-se atribuir o déficit de qualidade à má adequação entre as convicções do repórter e a sua tarefa de oferecer um relato eficiente dos acontecimentos: ou ele encenou neutralidade, e frustra seu público, ou produziu uma narrativa panfletária, e confunde o público. Por uma e por outra, desinforma.
* Eugênio Bucci é diretor do grupo JDL(Jornalismo, Direito e Liberdade) e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde dá aulas de graduação e pós-graduação.